A
Cena: C. S. LEWIS ESTÁ SENTADO SOZINHO, tarde da noite, em sua grande mesa
de carvalho em The Kilns, Oxford. Está escrevendo Cristianismo Puro e Simples, sua pequena
obra-prima destinada a iluminar milhões de mentes e a auxiliar na conversão de
incontáveis almas. Tudo já está escrito, exceto a introdução. (Bons
escritores, geralmente, atrasam suas introduções por uma excelente
razão: têm de saber, primeiro, o que há de ser introduzido.) Lewis, de
repente, fica ereto: assustara-se. Ele parece ver dois visitantes em seu
quarto. Esfrega os olhos, mas os dois não desaparecem. Um deles é um frade dominicano
um tanto largo e gordo, vestindo um robe branco e tonsurado, aparentemente,
numa síncope de abstração distraída. O outro é um monge agostiniano vestindo um
robe preto e, apenas, um pouco menos, formidavelmente, gordo, ventilando seu
traseiro com o robe. Aparentemente, acabara de soltar gases. Ele
murmura: “Quando peido em Wittenburg, o Papa sente o cheiro em Roma.”. O
primeiro pensamento de Lewis é que há, aqui, quatro possibilidades: estas duas
criaturas vieram ou do Céu, ou do Inferno, ou do Purgatório, ou, então,
diretamente, de Central Casting.
De repente, pensa numa quinta possibilidade muito mais provável: eles vêm
de sua própria imaginação. Jamais, há de resolver esta questão em sua
mente com certeza, embora a conversa com os dois seja tão vivaz a fim de tornar
a quinta possibilidade um tanto improvável. Eles falam Inglês, mas com
carregados sotaques. Lewis não pode deixar de associar o sotaque do Dominicano
com a máfia e o do Agostiniano com a Gestapo. Por meio de um esforço da vontade
e da caridade, ele exorciza esses pensamentos e é recompensado pela providência
divina, visto que as duas figuras não desaparecem, mas começam a falar.
LUTERO:
Que estás a escrever aí, Irmão Jack?
LEWIS:
Você é… o Irmão Lutero?
LUTERO:
Este teu hábito de responderes a uma pergunta com outra pergunta — tu és
um rabino, ou psiquiatra? Lewis (rindo): nenhum dos dois. Somente, um escritor.
Estou, apenas, dando uns toques finais em algumas entrevistas que dei na
BBC para publicá-las, ou penso que estou pelo menos. Ao ver vocês dois aí, não
estou mais tão certo assim do que é real.
AQUINO:
Somos reais, asseguro-te, e somos privilegiados em conhecê-lo, pois tu realizas
a mesma e honrosa tarefa que realizamos outrora.
LUTERO:
Estamos aqui para ajudar-te a terminar teu livro, o título e a introdução, e
para assegurá-lo de que estas poucas páginas serão uma poderosa arma nas mãos
do Espírito.
LEWIS:
Estou honrado, e intrigado.
AQUINO:
Estamos aqui, também, para fazer-te algumas perguntas.
LUTERO:
Sobre este teu livro, especialmente o título, estás pensando em tomar
emprestada a frase de Baxter: “Cristianismo Puro e Simples”? Ora, que
queres dizer com isto?
LEWIS: Se
já sabes tanto sobre minha mente, deves saber a resposta.
AQUINO:
Sobre tua mente, sabemos apenas aquilo que Deus permite-nos saber, mas, mesmo
se soubéssemos tudo que está em tua mente, você não o sabe. Não ainda. Fomos
enviados para questioná-lo a fim de que você mesmo possa sabê-lo melhor, assim
como Deus enviou Seu anjo a Jó munido de perguntas, não respostas. Tudo isto
pela mesma razão: Deus é socrático.
LUTERO:
Falando claramente, é este teu “Cristianismo Puro e Simples” algum tipo de
alternativa ao Protestantismo ou ao Catolicismo? Esta é uma maneira de evitar
esta escolha? É algum Anglicanismo anônimo? Uma via media?
AQUINO:
Sabemos bem, Irmão Jack, que o Catolicismo Romano é o único assunto que tu não
discutes, nem mesmo com teus amigos. Por quê?
LEWIS:
Tantas perguntas difíceis! Irmãos, como Deus sabe, a única razão que
tenho — ou, honestamente, penso que tenho — para não discutir esta
rixa entre as igrejas é vergonha. Envergonho-me desta rixa, como um sujo
escândalo familiar: é uma ferida pública no Corpo de Cristo, uma ferida
vergonhosa, não uma daquelas feridas santificadas e gloriosas, como as feridas
dos mártires, ou a ferida que o hesitante Tomé foi convidado a tocar. Oro,
diariamente, por sua cura. Também, não tenho falado, nem escrito, sobre
isto, publicamente, pois julgo que nosso Senhor assim o deseja. Penso que
Ele, deliberadamente, colocou-me aqui, bem no centro da linha de batalha onde a
necessidade de defesa é a maior, mas seus defensores, poucos. Talvez Ele
tenha enviado outros a avançados campos teológicos a fim de conquistar
novos territórios, mas enviou-me para defender os fundamentos. Esta é a razão
pela qual dei estas entrevistas no rádio e, agora, escrevo este livro.
AQUINO:
Teus motivos são honestos e santos, mas talvez não haja aí também um certo medo
de encarar face a face a escolha e de encarar as
inflexíveis reivindicações da Igreja de maneira igualmente inflexível,
como de fato encaraste as inflexíveis reivindicações de Cristo? Defendes bem o
antigo argumento sobre Ele: Cristo era “ou Deus ou um homem mal”, mas
jamais apenas um homem bom. Que tens a dizer sobre o argumento paralelo
sobre as reivindicações da Igreja Católica? Ela reivindica singularidade
e infalibilidade como nenhuma outra Igreja faz. Está, neste ponto, certa
ou errada. Se estiver certa, está muito certa e é nosso dever ajoelharmo-nos
perante ela, entrarmos nela e servirmos a ela como o corpo visível de
Cristo na Terra.
LUTERO: Se
estiver errada, ela não estará, apenas, muito errada, mas se mostrará, intoleravelmente,
arrogante, até mesmo blasfema, e é teu dever expô-la e opores-te a ela com
todo teu coração e, pela mesma razão, por amor ao nosso Senhor.
LEWIS:
Não sei como responder.
AQUINO:
Ao permanecer fora da Igreja Católica, já respondeste.
LEWIS:
Minha razão é movida pelos argumentos católicos, mas, também, por alguns dos
argumentos anticatólicos. Porém, meus sentimentos e instintos são
aqueles dum filho de Ulster. Certamente, vocês dois podem dizer-me toda a
verdade? Qual de vocês estava errado? Certamente, não estarão relutantes em
admitir seus erros agora?
LUTERO:
Não nos é permitido dizer-te coisas que apenas os abençoados nos Céus conhecem,
Irmão Jack.
AQUINO:
Fomos enviados para ensinar-te algo, não te contar algo. Talvez possamos
ajudá-lo a encontrar a verdade por si mesmo.
LEWIS:
Agradeço por qualquer ajuda que possam dar-me. Como?
LUTERO:
Defenderemos nossos respectivos credos assim como o fizemos na terra, sem
corrigirmos nenhum de nossos erros. Se o Irmão Tomás for, agora, um protestante,
ou até mesmo um luterano, esconderá tal fato e se eu for agora um católico
romano, ou até mesmo um tomista, esconderei tal fato. Agora, cinja os
lombos de tua mente, irmão Jack.
LEWIS: Se
tudo que será dito aqui é aquilo que já disseram na terra, e que eu já sei,
como hei de saber que vocês não são meu próprio inconsciente?
LUTERO:
Isto, também, tu não saberás.
LEWIS: Em
nome, contudo, da própria Verdade, irmãos, declaro-lhes que meu desejo de
conhecer a verdade sobre as reivindicações das diversas igrejas não é mera
curiosidade ociosa. Meu coração bate com selvageria desejoso de conhecer a
verdade para que minha pena possa dela servir-se. Não haverá Deus de honrar
este motivo?
AQUINO:
Ele irá, mas em Seu tempo e de Sua maneira.
LUTERO:
Veja bem, em Sua providência, Ele sabe que não poderia cumprir Seu plano de
batalha para ti tão bem se tu soubesses estas coisas. Não poderias ter escrito
este livro para começar. Estas páginas teriam sido diferentes, endereçadas a
apenas uma parte da cristandade.
LEWIS:
Entendo.
LUTERO:
Diga-me: este teu “Cristianismo Puro e Simples” é um credo alternativo
àqueles de Augsburgo ou Trento?
LEWIS:
Não. Ele é o Credo dos Apóstolos, o fundamento de ambos. Minha esperança é que
um retorno ao fundamento comum possa ajudar a curar a ferida e a solucionar a
divisão.
AQUINO:
Bom, mas como este “Cristianismo Puro e Simples” relaciona-se com as
igrejas?
LEWIS:
Assim como uma sala de entrada relaciona-se com os quartos que a ela abrem-se.
Uma sala de entrada não é lugar para viver-se. Toda a comida e calor, camas e
mesas estão nos quartos. É um lugar de entrada, não de chegada.
LUTERO:
Muito bem. Ponha este pensamento em teu livro. Deixe isto claro, já na
introdução, para que não dividas, ainda mais, a Igreja e cries outra
denominação: a “Simpl-ismo.”, pois, de outra maneira, teus leitores serão
tentados a lidarem com suas dúvidas permanecendo na sala de entrada.
LEWIS:
Oh, duvido que as pessoas seriam, assim, tão tolas.
LUTERO:
Estás errado. A grande tentação será fazer, justamente, isto. Será, até mesmo,
um tipo de boa tentação.
LEWIS:
Não entendo.
LUTERO:
É-me permitido revelar este tanto do futuro. Em breve, os cristãos serão
forçados a unirem-se contra um inimigo comum.
LEWIS:
Por que a necessidade há de ser tão grande? Como o Diabo baterá à porta?
LUTERO:
Antes que teu século termine, o mundo há de afundar-se de maneira tão
espetacular na decadência que blasfêmias e pornografias, como jamais
imaginaste, serão protegidas por lei e as mais inocentes e inofensivas
piedades públicas proibidas, tais como as orações nas escolas. Os Dez
Mandamentos serão arrancados de todos os locais públicos e, em seu lugar, serão
colocadas obras de arte homoeróticas e sadomasoquistas mais ruidosas que tua
negra juventude jamais concebeu. O governo dará fundos para a exibição de
Cristo em uma jarra da urina de certo artista (não posso, nem mesmo, proferir o
título blasfemo desta abominação de desolação). Todos os anos, milhões
de mães serão persuadidas a matar seus filhos e filhas ainda em seus
úteros. Um terço de todos os bebês concebidos será abortado. A lei há de
remover toda a proteção sobre estes santos inocentes e a mídia fará sua parte por
meio da censura e da mentira. A mais temida doença sexualmente transmissível
serão as crianças. Metade de todos os casamentos falhará. Nas grandes cidades,
a maioria das crianças será constituída de filhos ilegítimos. Os pais perderão
o controle sobre seus filhos de maneira lenta, mas firme. A virgindade transformar-se-á
num estigma e raridade e a fornicação, na norma. As escolas públicas
confiscarão Bíblias e distribuirão camisinhas. Propaganda descarada sobre
masturbação, fornicação, contracepção, aborto e sodomia será disfarçada sob o
nome de “educação sexual” e forçada pela goela abaixo em crianças
pré-púberes…
LEWIS:
(seus olhos arregalando-se a cada detalhe) Isto é incrível até mesmo para
um Puddleglum como eu. Quer
dizer que todas estas coisas terríveis acontecerão na Rússia?
LUTERO:
Não. As orações de três quartos dum século na Rússia serão respondidas. O
demônio comunista morrerá no Kremlin. As escolas públicas na Rússia hão de
implorar por Bíblias, até mesmo quando Escolas americanas proibirem-nas.
LEWIS:
Isto é, realmente, incrível — muito além de meus mais desvairados
sonhos. Por que está dizendo-me isto?
LUTERO:
Para que entendas por que teu livro há de ajudar, cristãos de todas as igrejas
serão forjados juntos pelo fogo, como os cacos quebrados duma espada. Católicos
e protestantes, às centenas, serão lançados juntos nas prisões por protestarem
contra o holocausto de bebês a Moloque. Daí, a “boa tentação” da qual
falei, a tentação de abandonar os quartos pela sala de entrada. Certifica-te de
avisá-los para este perigo.
LEWIS:
Obrigado, Irmão Lutero, com certeza fá-lo-ei.
AQUINO:
Tenho outra pergunta sobre o “Cristianismo Puro e Simples,” Irmão
Jack. Se ele é o Credo dos Apóstolos, como você diz, é constituído de apenas 12
proposições? É uma abstração dos credos mais completos de todas as
igrejas, como um tipo de mínimo denominador comum de credos? É ele um universal
abstraído de seus particulares? Neste caso, seria uma sala de entrada teológica
em vez de um quarto. Por outro lado, se é concreto, e não abstrato, isto não o
faria uma outra igreja, um quarto rival ao católico e protestante?
LEWIS:
Este é um dilema terrível, mas penso poder escapar pelas entrelinhas. Ele não é
nenhum dos dois: é o Evangelho. Isto é, concreto, não abstrato: algo sólido e
substancial. Aquilo compartilhado por protestantes e por católicos é algo
concreto: é o próprio Cristo e a fé Nele. Certamente, sabermos se Cristo é
divino e se, de fato, ressuscitou dentre os mortos é mais importante do que
sabermos se o Papa é infalível ou não. Certamente, assegurarmo-nos de que
Cristo é nosso Senhor é algo mais importante do que nos assegurarmos de que
Maria foi concebida de maneira imaculada.
AQUINO:
Sim, mas dizer que uma coisa é maior que a outra não é dizer que esta
última não é grande. Anjos são maiores que homens, o amor é maior que o
conhecimento e Cristo é maior que seus santos. Não obstante, todas estas coisas
secundárias são muito grandes.
LEWIS:
Verdade, Irmão Tomás, mas preciso descobrir, exatamente, quão grandes ou
importantes são as doutrinas distintamente católicas. Todas as doutrinas católicas
que o Irmão Martinho rejeitou foram doutrinas que ele não foi capaz de
encontrar, claramente, nas Escrituras — estas são essenciais ou
acidentais? Se forem acidentais, então, o “Cristianismo Puro e Simples” é
o único essencial e equivale ao Protestantismo. Se forem essenciais, então,
o “Cristianismo Puro e Simples” é uma mera abstração.
AQUINO: Agora,
escapo dos chifres de teu dilema. Existem três possibilidades, não duas: a
essência, um simples acidente ou uma propriedade essencial (ou acidente
apropriado). A divindade e ressurreição de nosso Senhor são essências. Se
alguém as negar, ele, simplesmente, não é um cristão. Latim na liturgia e jejum
nas sextas são acidentes mutáveis, mas a autoridade da única Igreja visível e a
presença real de nosso Senhor na Eucaristia não são acidentes, mas sim
propriedades da essência. Elas fluem da essência, embora não sejam a essência.
Portanto, a disputa não se dá nem sobre a essência nem sobre os acidentes, mas
sim sobre as propriedades. Cristão algum discordaria da grande fórmula de
Agostinho: “Nos essenciais, unidade; nos não essenciais, diversidade;
em todas as coisas, caridade.”, mas nossa disputa deu-se entre as propriedades
dos “essenciais”. Esta é a razão pela qual não alcançamos a unidade.
LUTERO: O
mesmo que tu dizes sobre a Igreja digo eu sobre a Sola Scriptura, a Sola Fide
e a Sola Gratia: estas são
propriedades essenciais.
LEWIS:
Isto torna, então, a noção de um “Cristianismo Puro e Simples”
problemática, pois um católico jamais diria que o Catolicismo é
o “Cristianismo Puro e Simples” mais a Igreja e um luterano jamais diria
que o Luteranismo é o “Cristianismo Puro e Simples” mais a Justificação
pela Fé apenas, pois estes não são acidentes, mas, sim, propriedades essenciais
e um de vocês, parece-me, está errado quanto a estas propriedades essenciais.
Estes erros são, de fato, extremamente, sérios.
AQUINO:
Teu “Cristianismo Puro e Simples” não pode ser mais
um “Cristianismo-mais” nem um “Cristianismo-menos”. Tu não deves
adicionar nem subtrair, muito menos criar “outro Evangelho”, um novo
Cristianismo que se oporia ao “Cristianismo Puro e Simples”.
LEWIS: Irmãos,
um de vocês, no entanto, deve ter feito, justamente, isto: ou o Irmão Martinho
subtraiu o Catolicismo do Cristianismo ou a Igreja Católica adicionou-lhe algo.
Portanto, a disputa é sobre o que este “Cristianismo Puro e Simples” é de
fato. Sendo assim, a fim de evitar que esta disputa apareça em meu livro, devo
lançar mão de uma série de proposições aceitas por ambos os lados —
essencialmente, o Credo Apostólico — como um denominador mínimo comum,
assim, parece-me.
LUTERO:
Certifica-te de que teu livro esteja centrado em Cristo. O propósito de
cada sílaba que escreveres deve ser o mesmo propósito de cada pedra
sustentando cada igreja e de cada moeda em cada um dos pratos de coleta: salvar
almas perdidas para Cristo.
AQUINO: E
santificá-las.
LUTERO: E
não as direcionar para disputas sobre a relação entre a justificação e a santificação,
nem ao Cristianismo católico, nem ao Cristianismo luterano, nem
ao “Cristianismo Puro e Simples” como uma abstração, mas sim à pessoa
concreta de Cristo.
LEWIS:
Deveras, esforçar-me-ei por ser, ubiquamente, cristocêntrico, mas você quer
dizer que os credos não contam?
LUTERO: Certamente, não, but the creed is for the deed.
LEWIS:
Que coisa estranha para você dizer! Você quer dizer que a fé é para obras?
LUTERO:
Não, quero dizer que tu deves direcionar as mentes de teus
leitores para Cristo a fim de que seus corações, também, para lá
se direcionem. Falo da obra da fé.
AQUINO:
Teu propósito está claro, agora, Irmão Jack?
LEWIS:
Está. Agradeço-lhes, mas não posso perder a oportunidade de tentar clarear
estas propriedades sobre as quais vocês disputaram. Vocês dois, claramente,
possuem a mesma religião, mas teologias diferentes. Se não podem dizer-me,
diretamente, o que é verdadeiro e o que é falso, teologicamente, ensinar-me-iam
de outra maneira?
LUTERO:
Sim. Isto é parte de nossa tarefa aqui e,em virtude disto, argumentaremos assim
como o fizemos na Terra.
AQUINO:
Teremos algo duma disputa escolástica, um debate curto, formal e lógico. Assim,
que comecem os jogos. Interpretaremos, nós mesmos, como éramos. Irmão Martinho,
enquanto aquele que protesta, há de começar. Seremos controversos, mas
amigáveis — até mesmo brincalhões — enquanto interpretamos estes
antigos papéis, agora, totalmente, livres dos antigos sentimentos de ódio e de medo.
Engajaremo-nos em polêmicas, mas de uma maneira não polêmica, como se
atuássemos — atuação séria, mas uma da qual podemos distinguir-nos, como
os polemistas do passado não poderiam.
LUTERO:
Começo, então, questionando a noção mesma de um “Cristianismo Puro e
Simples” comum a ambas as igrejas. Concedo: Cristo é-nos comum, pois viemos do
Céu e não do Inferno, mas não há qualquer fundamento comum a nossas duas
igrejas. Os católicos devem dizer que as igrejas protestantes são heréticas e
cismáticas e eu digo que a Igreja Católica Romana é apóstata, pois prega
Escrituras diferentes, uma salvação diferente e uma diferente soberania.
Escrituras diferentes, pois adicionaram as tradições humanas à Palavra de Deus.
Uma salvação diferente, pois substitui a salvação pela fé pela salvação pelas
obras e uma soberania diferente, a soberania do, assim, chamado
livre-arbítrio, em vez da soberania de Deus e da Sua graça. Minhas três
fórmulas são escudos contra estes três mortíferos e horrendos dardos do
erro: Sola Scriptura contra a
reivindicação da Igreja que adiciona uma segunda Escritura; Sola Fide contra as reivindicações das
boas obras que adicionam uma segunda salvação e Sola Gratia contra as reivindicações do livre-arbítrio, que
adicionam uma segunda soberania à soberania de Deus. Em primeiro lugar, Sola Scriptura. Todas as nossas
diferenças começam aqui, na epistemologia. A razão pela qual rejeito todas as
doutrinas católicas é que não as encontro nas Escrituras. Sola Scriptura é minha chave-mestra. Hei de entrar em
quaisquer portas doutrinárias que esta chave abra; em quaisquer portas que ela
não abra, eu não entrarei. Agora, Irmão Jack, se tu, também, em teu livro, confinares-te
aos ensinamentos encontrados nas Escrituras, então, teu
livro “Cristianismo Puro e Simples” será apenas outro nome para
Protestantismo. Segundo, Sola Fide.
A Igreja Católica prega outro Evangelho, pois os livros de Romanos e de Gálatas,
claramente, ensinam que o homem é justificado pela fé somente, sem as obras da
lei. Aqui, os católicos não apenas adicionam às Escrituras, eles contradizem-na —
e na questão mais importante do mundo: o que devo fazer para ser salvo? Os católicos, simplesmente,
não sabem como chegar ao Céu! Têm nas mãos um mapa todo errado. Se alguns deles
alcançam o Céu, como tu, Irmão Tomás, isto não se dá em virtude de seus mapas,
mas, sim, a despeito deles. Nosso Senhor disse: “Pelos seus frutos,
conhecê-los-ei”. Podemos observar os miseráveis e escassos frutos
da árvore católica e julgarmos se esta é, ou não, a Árvore da Vida. Se
perguntássemos ao homem que, agora, escreve este diálogo — sujeito que é
professor num dos maiores e mais famosos colégios católicos de sua época em
Boston —, quantos de seus estudantes mencionariam o nome de Cristo quando, por
meio de textos ou questionários, fossem interpelados sobre o que haveriam de
dizer quando, por ocasião de sua morte, Deus perguntasse-lhes por que deveria
deixá-los entrar no Céu, este professor haveria de dizer-nos que apenas um,
dentre cinqüenta destes, mencionaria o nome de Cristo. Como esta poderia ser a
Igreja de Cristo se sequer reconhece o Cordeiro de Deus como seu Salvador? Terceiro, Sola
Gratia. A Teologia católica é metade cristã e metade pagã, ou humanista,
pois dá ao homem o papel de permitir ou não que a graça de Deus
opere — o papel de cooperar, livremente, em sua própria
salvação. A venda de indulgências foi apenas um exemplo espetacular deste mais
profundo princípio. O princípio é aquele do Paganismo: barganhando com a
deidade. É com os deuses pagãos que podemos fazer contratos; o Deus de Abrãao, de
Isaque e de Jacó é soberano. É o homem pagão que, com orgulho, considera sua
própria volição como algo soberano e livre; o homem cristão sabe que sua
vontade está cativa, pois ele é um pecador, e todo pecador é um escravo do
pecado, e pode ser salvo apenas pela graça de Deus. É tua vez, agora, Irmão
Tomás, de obscurecer minhas simples declarações escriturísticas com suas
sutilezas e sofismas escolásticos.
AQUINO:
Responder-te-ei de maneira tão clara e direta quanto apresentaste tuas objeções
e em tempo. Igualmente, curto.
LUTERO:
Se eu fosse um apostador, apostaria metade de minha fortuna que tu não vais
fazer isto. Não conseguirás nem mesmo igualar meu tempo. Tu és gordo e lento e
eu corro muito mais rápido que ti.
AQUINO:
Apenas à latrina, não ao papel. Meu estilo era mais condensado que o teu,
Irmão Martinho.
LUTERO:
Se estás, com indecência, implicando uma condição de diarréia intelectual de
minha parte, respondo que, ao constipado, o normal parece sofrer de diarréia.
AQUINO:
Estamos a disputar quem é o mais analítico ou estamos disputando ad rem?
LUTERO:
Estou apenas apostando que tu não consegues bater meu tempo. Vós, italianos,
jamais acreditastes, de fato, no tempo. Apenas um homem jamais fizera seus
trens andarem no tempo — Mussolini — e isto foi louvado como um
milagre.
AQUINO:
Não fosse esta inaptidão italiana com relógios, teu compatriota, um tal Adolf
Hitler, que tinha Mussolini como seu aliado, não teria sido forçado a atrasar
sua campanha na Rússia até ter resgatado a ridícula, e fracassada, invasão de
Mussolini na Iugoslávia e teria, assim, conquistado Moscou, Stalingrado, e
Leningrado e, portanto, a Rússia, portanto, a guerra e, portanto, o mundo.
Desta feita, o mundo foi salvo pela inépcia italiana com o tempo!
LUTERO:
Qual é o ponto desta nova teoria da história, Irmão Tomás? Quem está falhando
em argumentar ad rem agora?
AQUINO: O
ponto é que, simplesmente, eu sou capaz de condensar meus argumentos muito mais
do que tu és, Irmão Martinho.
LUTERO:
Realmente? Quantas páginas teu pequeno Sumário de Teologia tem? Tu disseste na
Introdução que ela destinava-se a “iniciantes.” Quase 6.000 páginas,
correto? E tu nem mesmo o terminaste!
AQUINO:
Não pude. À luz da visão que tive, tudo que dissera, até então, era, apenas,
palha.
LUTERO:
Ora, nisto acertaste pelo menos.
AQUINO:
Não foi, exatamente, disto que tu chamaste a epístola de Tiago? Antes chamar minhas
próprias palavras de palha do que as alheias e, certamente, melhor chamar de
palha as palavras humanas do que as de Deus! — no momento em que Lutero
pega um tinteiro para lançá-lo na cabeça de Aquino (numa brincadeira,
claro, pois, afinal de contas, eles vieram do Céu, onde inventaram o brincar),
Lewis interrompe-os:
LEWIS:
Irmãos, este é o tipo de disputa escolástica praticada no Céu? Por favor, lutem
apenas com um tinteiro destilado em palavras.
LUTERO:
Ahá! O Irmão Jack é adepto dos trocadilhos, assim como eu — um tanto
diferente daquele pesado literalismo que pende de suas mãos, Irmão Tomás.
AQUINO:
Literalismo? Moi? Jamais ouvistes falar de minha doutrina da analogia? Até
mesmo a palavra “ser” é um trocadilho em minha filosofia.
LEWIS:
Divirto-me, mas não aprendo, senhores. Irmão Tomás, tu hás de fazer tua
habitação no tempo ou podes responder às três acusações feitas pelo Irmão
Martinho?
AQUINO:
Fico feliz em respondê-las. Em primeiro lugar, a maioria de nossas
diferenças teológicas está, de fato, enraizada na epistemologia da Sola Scriptura. Não digo todas, pois
algumas se encontram enraizadas em nossa metafísica. Teu nominalismo é
a raiz de tua teoria “federal” da justificação por exemplo. Eu nego a
Sola Scriptura, pois ela é autocontraditória.
As Escrituras, somente, não ensinam "somente as Escrituras”. A Sola Scriptura é uma teologia
humana — a tua — adicionada às Escrituras. Segundo, as Escrituras
concedem o título de “coluna e firmeza da verdade” não a si mesma, mas,
sim, à Igreja.
Terceiro,
tu compreendes mal as reivindicações católicas para a Igreja. Ela não é uma
segunda fonte da verdade, separada e rival, um segundo livro, um segundo dado.
Ela ensina, interpreta, protege e defende seu dado original, “o depósito
da fé”, que é, virtualmente, idêntico com as Escrituras. Ela é um (e apenas um)
professor vivo, com um (e apenas um) livro vivo. Quarto, as consequências
inevitáveis da Sola Scriptura na
história têm sido infindáveis dissensões e denominacionalismo — justamente,
aquela coisa contra qual as próprias Escrituras, freqüentemente, avisam-nos e
contra a qual nosso Senhor rogou ao Pai em Sua oração sacerdotal antes da
Paixão (João 17). Agora, nos dias do Irmão Jack, já existem
20.000 denominações não católicas diferentes! Certamente, São Paulo
estava correto em horrorizar-se, por completo, com a visão das três ou quatro
denominações que, naquela época, surgiam em Corinto e — sem
misericórdia! — em matar este câncer maligno antes que pudesse “metastizar-se”.
O Sola Scriptura, sem uma Igreja
autoritativa, significa que cada pupilo interpretará o livro do professor à sua
maneira, não à maneira do professor, tornando-o, assim, supérfluo.
Eventualmente, haverá tantas interpretações quantos pupilos, de fato, tantos
livros quantos pupilos. Desta feita, a Sola
Scriptura mina a autoridade da própria Escritura que exalta. A conclusão
lógica da interpretação privada são igrejas privadas — eventualmente,
tantos protestantismos quanto protestantes. Quinto, há o argumento causal. Uma
causa falível não pode produzir um efeito infalível, mas a Igreja é a causa eficiente
das Escrituras. Ela escreveu-a. Ela é, também, sua causa formal: Ela definiu
seu cânone. Assim, se a Igreja é apenas falível, as Escrituras são falíveis.
Novamente, tua doutrina do Sola Scriptura
rebaixa a autoridade da própria Escritura que deseja exaltar. Sexto, os ataques
à autoridade das Escrituras por hermeneutas céticos, naturalistas e
modernistas têm, de fato, lançado metade do mundo protestante em algo que
até tu chamarias de heresia. Embora muitos eruditos individuais católicos sejam,
também, modernistas, a Igreja jamais o foi nem o será. Então, mais uma vez, tua
negação da autoridade da Igreja tem solapado a autoridade das Escrituras.
Em teu segundo ponto principal, Sola Fide,
pergunto-me se a nossa aparente contradição referente à justificação pela fé
não esconde uma concordância real, pois eu concordo contigo que apenas a fé
pode justificar-nos, como São Paulo, claramente, di-lo e penso que tu concordas
que as boas obras são o fruto inevitável da fé real e salvífica. Tu, também,
concordas que a fé intelectual, por si, não nos justifica (pois “os
demônios também crêem, e tremem”) e que a maior das três “virtudes
teologais”, a fé, a esperança e a caridade, não é a primeira, mas, sim, a
última, assim como este mesmo Apóstolo diz-nos, e eu concordo contigo
quando dizes que o homem não pode comprar seu caminho para o Céu com boas
obras (pois “todas as nossas justiças são como trapo de imundícia”) e tu
não dizes que não importa o que fazemos após acreditarmos. Tu vês, meu Irmão, como
nos compreendem mal e fazem de nós caricaturas os nossos apologistas?
Também, concordo que os frutos da fé, freqüentemente, faltam entre os
católicos, mas faltam, também, entre os protestantes. Será que isto refuta
a teologia protestante? Certo homem chamado Chesterton, que escreveu
o melhor livro que há sobre mim, certa feita, disse que o único grande
argumento contra o Cristianismo são os cristãos. Todavia, não se pode provar a
verdade doutrinária pelo medir da temperatura espiritual de seus aderentes.
Hereges podem ser um tanto morais e sinceros e autoridades que falam a
verdade, perversas. Os papas Borgia foram libertinos, assassinos e hipócritas,
e, não obstante, sentaram-se na cadeira de Moisés. Já que estamos a falar
disto, nenhum daqueles papas perversos, jamais, alterou os ensinamentos da
Igreja, mesmo quando os desprezavam. Por que não haveria um homem de estilhaçar
o espelho que lhe mostra seus pecados, a menos que este espelho seja
divinamente protegido? Portanto, tomo os mesmos fatos que tu lanças contra a
Igreja — sua corrupção — a fim de provar sua sobrevivência
providencial e miraculosa. Finalmente, Sola
Gratia. Com este, eu e o Concílio de Trento, ambos, concordamos, mas, como
Agostinho (que tu, também, reivindicas como teu professor), eu acredito, também,
em livre-arbítrio, pois, como Agostinho, eu abraço ambos os lados do paradoxo
presente no coração de todos os mistérios da fé, desde a Trindade, através da
Encarnação, até a natureza física-espiritual do homem. Agostinho diz que todos
os homens possuem livre arbítrio (liberum
arbitrium) por natureza, mas apenas os redimidos possuem liberdade, ou
a liberdade do pecado (libertas),
através da graça. Tu negas o livre-arbítrio, pois enxergas nele um humanismo
pagão. Isto não é verdade. Ele é a própria imagem de Deus em nós e tanto sua
criação quanto redenção dependem da graça. Nossa própria livre cooperação livre
com a graça, também, dá-se pela graça, como escrevi em minha “pequena”
Suma, se tu pelo menos houvesse a lido. Não digo que metade de nossa vida, ou
metade de nossa salvação, vem de nós e não de Deus. Todas as coisas vêm de
Deus. A relação aqui se assemelha à relação de um autor com seus personagens.
Todas as escolhas de Odisseu são livres e todas são suas; são, também, todas
predestinadas, e todas de Homero, pois Deus, nosso soberano Autor, decreta-nos
livres. Deus é nosso Homero. Ele é teu Pai, não teu padrasto; Ele não faz uma
oferta que tu não possas recusar.
LUTERO:
Terminaste?
AQUINO:
Sim.
LUTERO:
Pois bem. Prometemos examinar o conceito do Irmão Jack, de um “Cristianismo
Puro e Simples”, mas me parece que diferimos tão radicalmente sobre o que o
Cristianismo que a noção mesma de algum conceito comum encontra-se, agora, em
risco.
AQUINO:
Isto não é verdade, Irmão Martinho.
LUTERO:
Como não o é, Irmão Tomás, se tu negas e afirmas todos os meus três Solas?
AQUINO:
Eu afirmo-os em todos os seus sentidos apropriados, mas precisamos do cuidado e
da paciência de um filósofo a fim de definirmos estes sentidos. A fórmula Sola Scriptura está correta
materialmente, mas não formalmente. O material bruto, o conteúdo, os dados da
fé, estão todos nas Escrituras, mas a Igreja define-o e formaliza-o em seus Credos.
LUTERO:
Se os dados para todos os ensinamentos católicos devem estar nas Escrituras,
então, é melhor que abandones teus Dogmas Marianos, pois estes não
estão lá.
AQUINO:
Com certeza, estão. Eles estão.
LUTERO:
Mas as Escrituras quase não falam sobre ela. Apenas alguns versos soltos. Tu
ergueste um enorme prédio sobre um minúsculo fundamento que não aguenta
seu peso.
AQUINO:
Pode uma bolota aguentar o peso dum carvalho? O imenso edifício do Dogma
Trinitário, como definido pelos conselhos ecumênicos dos primeiros seis
séculos, que tu manténs, assim como eu, também, repousa sobre um
fundamento textual, relativamente, pequeno nas Escrituras e algo misterioso:
observa quão facilmente muitos hereges compreendem erroneamente o mesmo
dado e quão variados são seus erros.
A metáfora
da árvore é-nos propícia: a Igreja faz seus dogmas crescerem, gradualmente,
desde dentro, como uma árvore cresce; não como os prédios crescem, a partir de
fora. Portanto, minha analogia biológica é mais apropriada que a tua, tecnológica.
LUTERO:
Permita-me, então, tentar uma terceira imagem. Os católicos têm dois cavalos
puxando sua biga — a Igreja e as Escrituras — ao passo que os protestantes
têm apenas um. Há uma óbvia contradição aqui entre nós.
AQUINO:
Há apenas um cavalo, que, por sua vez, precisa de um cavalheiro. Há apenas um
livro divino, que, por sua vez, precisa de apenas um intérprete divino.
LUTERO:
Tua analogia não é apropriada…
AQUINO:
Os cavalos foram tua analogia, Irmão Martinho, não minha.
LUTERO:
Tu forneceste o cavalheiro, Irmão, eu forneci apenas o cavalo. Teu cavalheiro é
o mestre do cavalo, mas a Igreja não é o mestre das Escrituras, e sim, sua
serva.
AQUINO:
Concordo! Assim como o intérprete é o servo do livro que interpreta.
LUTERO:
Mas qualquer um pode ver que este intérprete já não é mais o humilde servo de
seu livro, mas, sim, o autor de um segundo livro. Tal coisa não é difícil de ver-se.
Qualquer um pode comparar os Dogmas da Igreja com as Escrituras e enxergar, por
si mesmo, que a Igreja está adicionando, não apenas interpretando. Hei de
tornar isto mais claro lançando mão de mais uma imagem. O que fiz foi reformar
a Igreja, não a refundar. Foi algo como arrancar crustáceos do casco de um
navio, da Arca da Igreja. Eu restabeleci-a à forma designada por Deus, que
havia se deformado por uma crosta de crustáceos adicionada por homens.
AQUINO:
Então, tu acreditas que nosso Senhor criara uma igreja protestante e nós
tornamo-la católica, ou romana, ao passo que nós acreditamos que nosso Senhor
criara uma igreja católica e tu tornaste-a protestante, reduzira a Arca a um
barco a vela.
LUTERO:
Essencialmente, esta é nossa diferença sobre a história da Igreja.
AQUINO:
Muito bem. Então, a questão pode ser testada empiricamente. A pesquisa
histórica há de mostrar ou uma posição ou a outra e eu reivindico que ela há de
mostrar a continuidade dos Dogmas Católicos e suas raízes nos mais antigos
escritos dos Pais da Igreja. Muitos conversos católicos encontraram seu caminho
para Roma na estrada da história — o cardeal Newman por exemplo. Todas as
doutrinas, distintamente, católicas serão encontradas lá, muito cedo, na
história da Igreja, embora algumas estejam mais claras que outras.
LUTERO:
Assim tu reivindicas, mas eu reivindico para as Escrituras o mesmo que tu
reivindicas para os Pais da Igreja: que uma investigação empírica e
factual há de revelar que a igreja fundada por Cristo era protestante, não católica.
Tu reivindicas provar o Catolicismo ao encontrá-lo nos Pais; eu reivindico
provar o Protestantismo por encontrá-lo nas Escrituras e, assim como tu
reivindicas não encontrar quaisquer doutrinas distintamente protestantes nos
Pais, eu reivindico não encontrar quaisquer doutrinas, distintamente, católicas
nas Escrituras.
AQUINO:
Então, devemos comparar a doutrina católica com as Escrituras e a doutrina
protestante com os Pais e observarmos quais reivindicações hão de mostrarem-se
falsas pelos fatos e lembre: o argumento do silêncio nada prova. Tu deves
provar que as Escrituras contradizem a doutrina católica e eu devo provar que,
desde o começo, os ensinamentos da Igreja, explicitados nos escritos dos Pais,
contradizem a doutrina protestante. Ora, como tu propões que comecemos esta
investigação?
LUTERO: Irmão
Tomás, deves estar, agora, em um de teus famosos transes de distração
novamente. Não temos o tempo necessário para tal investigação aqui, pois
estamos na Terra, e não no Céu, e estamos aqui pelo Irmão Jack, que se encontra
restrito pelo tempo. Ele é mortal e não como nós. O homem não tem um tempo livre
infinito.
AQUINO:
Lamentável!
LUTERO:
Sugiro que confinemos nossos argumentos às Escrituras.
AQUINO:
Tal procedimento pressupõe teu Sola
Scriptura, pelo menos na prática, mas esta é a questão mesma em disputa
aqui. Tu pareces cometer um petitio principii.
LUTERO:
Não. Desejo mover-nos para o Sola Fide,
o mais crucial dos Solas, posto ser
aquele que nos diz o que devemos fazer para que sejamos salvos e, uma vez que
ambos aceitam a autoridade das Escrituras, a partir delas, poderei argumentar que
Romanos e Gálatas, claramente, ensinam o Sola
Fide, quer o Sola Scriptura seja
verdadeiro ou não.
AQUINO:
Mas também aceito o Sola Fide em seu
sentido apropriado, assim como aceito o Sola Scriptura em seu sentido apropriado, como já o disse. Também, aceito
o Sola Gratia, visto, também,
encontrar-se nas Escrituras.
LUTERO: Tu,
entretanto, não aceitas estes três princípios. Teu “sentido apropriado” é,
na verdade, inapropriado. Tu não os aceita em essência.
AQUINO: A
essência que tu imputas-lhes, não, não aceito, mas a essência que lhes é
imputada pela Igreja e pelas Escrituras, sim. Tu não és minha autoridade,
afinal de contas; a Escritura e a Igreja são-nas.
LUTERO:
Tu não aceitas a maneira ensinada pelas Escrituras. Tu contradize-las.
AQUINO:
Assim, tu pensas e o mesmo penso de ti. Nenhum de nós pode ser o juiz de ambos.
Vês? Esta é a razão pela qual precisamos deixar a decisão nas mãos da
autoridade da Igreja.
LUTERO:
Não, precisamos deixar esta decisão nas mãos das Escrituras.
AQUINO: Ambos,
entretanto, aceitamos esta autoridade, e, não obstante, discordamos. Portanto,
somente esta autoridade — somente as Escrituras — não é, de fato,
capaz de resolver divergências. O que nos sucede, agora, é, justamente, a história
da Igreja em miniatura e, neste pequeno laboratório, poderemos ver, com clareza,
como as interpretações privadas, sozinhas, inevitavelmente, levam-nos ao
erro.
LUTERO:
Isto é falso. O Espírito há de manter-nos unidos e guardar-nos do erro se, tão
somente, submetermo-nos ao Seu comando.
AQUINO:
Ora, julgo que posso provar-te que a interpretação privada leva-nos ao erro se
tu, apenas, permitires que eu faça-te algumas perguntas no estilo socrático.
LUTERO:
Faze-as.
AQUINO:
Tu pensas que meu Catolicismo vem de mim ou de Deus? É o Espírito Santo que me
induz à submissão à Igreja Católica e ao Papa e a acreditar em todos estes
ensinamentos que tu rejeitas ou é meu próprio espírito humano?
LUTERO:
Teu espírito humano obviamente.
AQUINO:
Então, ao, assim, proceder, caí em erro, tu dizes.
LUTERO:
De fato.
AQUINO:
Então, a interpretação privada leva-nos ao erro.
LUTERO:
Isto é um sofisma!
AQUINO:
Não, é apenas lógica. Um de dois contraditórios deve ser falso. Objetas a
isto?
LUTERO:
Não…
AQUINO: E
nossas duas posições são contraditórias, tu o dizes?
LUTERO:
Sim. Espere — suponha que eu diga não?
AQUINO:
Então, recebo-te com braços abertos à união e à reconciliação com Roma!
LUTERO: E
se eu disser que são contraditórias?
AQUINO:
Então, um de nós foi levado ao erro.
LUTERO: Sim.
AQUINO:
Então, a interpretação privada leva ao erro.
LUTERO:
Não: a interpretação romana leva-nos ao erro. Minha interpretação privada,
guiada pelas Escrituras e pelo Espírito, diferentemente da tua, levou-me
à verdade.
AQUINO:
Estão, todas as “interpretações romanas” estão erradas? Temos nos papas
algum magistério do erro infalível?
LUTERO:
Suponho que não. Nem mesmo a ACLU pode estar errada sempre.
AQUINO: E
todas as interpretações privadas estão elas certas? Estão corretas, cada uma
das 20.000 denominações protestantes, mesmo quando se contradizem umas às
outras?
LUTERO: É
óbvio que não, mas estes, ainda, são sofismas, Irmão Tomás. Tu poderias,
simplesmente, negar o sentido claro de qualquer texto nas Escrituras e, daí,
inferir que a interpretação privada leva ao erro e que a Igreja deve tomar a
frente e interpretar a Bíblia de maneira autoritária. As Escrituras são claras
para aqueles cuja abordagem é clara. O puro de coração há de, verdadeiramente,
ver Deus. Se tua vontade é fazer a vontade do Pai, hás de entender o
ensinamento.
AQUINO:
Se as Escrituras são claras, por que tantas heresias? Todos os hereges têm
reivindicado as Escrituras, acreditado nas Escrituras, apelado às Escrituras.
LUTERO:
Mas não se submeteram ao Espírito. O Espírito jamais nos desvia do caminho
correto.
AQUINO:
De fato, não, mas como podemos saber quais mestres possuem o Espírito e,
portanto, a verdade e quais, apenas, reivindicam ter-Lho, mas não o têm e,
portanto, não possuem a verdade — a menos que tenhamos a Igreja para dizer-nos
isto publicamente? Testemunhas privadas contradizem; uma testemunha
pública julga.
LUTERO: A
testemunha pública são as Escrituras. Elas interpretam-se a si mesmas.
AQUINO:
Que queres dizer com “As Escrituras interpretam-se a si mesmas”?
LUTERO:
Que ninguém que, com honestidade, buscar a verdade em suas páginas há de
desviar-se.
AQUINO:
Parece-me, portanto, que tu deves acreditar que jamais houve
um herege honesto.
LUTERO: E
parece-me que tu deves acreditar que Deus deu-nos as Escrituras como um
quebra-cabeças para ser montado pelos papas, em vez de uma luz para iluminar os
leigos — um quebra-cabeças para teólogos em vez de um mapa para todos os cristãos.
AQUINO:
Não creio nisto, assim como tu não acreditas que jamais houve um herege
honesto. Até mesmo o mais elevado dos mestres é, freqüentemente, mal
compreendido ao falar de excelsos mistérios do Reino — como o foi o nosso
próprio Senhor, em muitas ocasiões, tanto por Seus amigos quanto por
Seus inimigos.
LUTERO:
Portanto, de acordo com ti, a Igreja deve aperfeiçoar os ensinamentos de nosso
Senhor?
AQUINO:
Não, mas, sim, obedecer à Sua comissão de explicá-las, de explorá-las, e de aplicá-las
fielmente.
LEWIS
(novamente interrompendo): Senhores, estou impressionado com os argumentos de
ambos, mas já ouvi a maioria deles antes e não me encontro nem um pouco mais
próximo da certeza. Não mencionei nenhum destes argumentos em meu livro,
pois não desejava colocar as Escrituras contra a Igreja, ou a protestante
contra a católica, pois possuo imensa estima por todos os quatro.
AQUINO:
Uma alta estima de ambas, a Igreja e as Escrituras, soa mais católico do que protestante.
LUTERO:
Mas o Irmão Jack inclui apenas ensinamentos protestantes — isto é,
escriturísticos — em seu “Cristianismo Puro e Simples”.
Portanto, “Cristianismo Puro e Simples” é apenas outro nome para o
Cristianismo protestante.
LEWIS:
Discordo de ambos aqui. “Cristianismo Puro e Simples” não é mais católico
do que protestante, nem é mais protestante do que católico: é o fundamento
comum de ambos.
LUTERO: O
fundamento comum do Cristianismo?
LEWIS:
Justamente.
LUTERO: E
o Cristianismo, essencialmente, informa-nos sobre nossos pecados e a salvação
oferecida por Cristo, não?
LEWIS:
Sim.
LUTERO:
Então, teu “Cristianismo Puro e Simples” diz-nos o que devemos fazer para
sermos salvos?
LEWIS:
Sim.
LUTERO:
Sendo assim, se há divergências entre protestantes e católicos quanto ao
assunto da salvação, não há qualquer núcleo comum, nenhum “Cristianismo
Puro e Simples” comum.
LEWIS:
Isto parece estar correto.
AQUINO:
Parece-me que, agora, chegamos ao coração de nossa questão sobre o “Cristianismo
Puro e Simples”.
LUTERO:
Deveras, e a questão perante nós é, apenas, a questão mais momentosa jamais
feita por qualquer homem: “O que devo fazer para ser salvo?”. A resposta
clara e simples das Escrituras é: “Acredite no Senhor Jesus Cristo e tu
serás salvo.”.
AQUINO: E
eu aceito isto. Tu, também, aceitas que as boas obras são um fruto necessário
da fé?
LUTERO:
Concordo.
AQUINO:
Então, concordamos em dois pontos essenciais.
LUTERO: Não
concordo, contudo, quando tu dizes que as boas obras contribuem para nossa
salvação. É apenas a fé que nos salva.
AQUINO: Tu,
no entanto, admites que as boas obras são, pelo menos, um sinal da fé, como
uma nota na escola, correto?
LUTERO:
Mas a nota não é a causa do passar de ano. É apenas o efeito.
AQUINO:
Correto. Entretanto, é uma parte de todo o processo de educação. O fruto é
parte de todo o processo de crescimento duma planta e, assim, também, as
boas obras são uma parte de todo o processo da salvação.
LUTERO:
Salvação, não. Justificação, não. Apenas, santificação.
AQUINO:
Portanto, tu admites, pelo menos, que, embora um homem possa ser justificado
somente pela fé, ele não é santificado somente pela fé, mas, também, pelas
obras?
LUTERO:
Ele é santificado, também, por sua fé.
AQUINO: É
esta uma fé que opera? Não é verdade que esta fé leva às boas obras, tão certo
como a semente leva à flor, se estiver, realmente, viva?
LUTERO:
Isto é verdade.
AQUINO:
Então, a fé opera. Ambos concordamos sobre isto. Penso que discordamos sobre
como ela opera, mas isto é Teologia. Isto que opera é religião. Temos a
mesma religião, mesmo que tenhamos diferentes teologias.
LUTERO:
Não tenho certeza se aceito tua análise de nossas diferenças. Permita-me tentar
entender. Como tu enxergas nossas mais profundas diferenças na Teologia?
AQUINO:
Em dois lugares. Primeiro, na ligação entre fé e salvação. Segundo, na
ligação entre fé e obras. Tu ensinaste uma “teologia federal”: ensinaste
que a ligação entre fé e salvação era o decreto legal de Deus. Eu ensinei
que há uma ligação ontológica, que a fé e o batismo, de fato, permitem que a
própria vida divina adentre nossas almas, assim como ligar uma torneira permite
que a água flua.
LUTERO:
Isto está correto. Eu era um nominalista e suspeitava de tal metafísica.
AQUINO: E
a segunda ligação, entre fé e boas obras, era, para ti, a nossa gratidão por
sermos salvos, mas, para mim, é, novamente, ontológica: a mesma vida sobrenatural
que permitimos entrar em nós, pela fé, deixamos sair pelas boas obras.
LUTERO:
Novamente, a metafísica!
AQUINO: Certamente,
contudo, a realidade objetiva da vida e da graça de Deus é uma base mais sólida
para uma conexão do que a resposta e sentimentos subjetivos do homem? Isto me
parece mais um humanismo do que Cristianismo!
LUTERO:
Isto não é mais humanista que a tua crença de que nossa fé faz a vida de Cristo
entrar em nós. Digo que é, exatamente, o inverso: o objeto de nossa fé, Cristo,
é a causa de nossos atos e fé.
AQUINO:
Afirmo a mesma coisa. Esta é a razão pela qual concordo com o teu Sola Gratia. Tanto nosso livre-arbítrio
quanto nossa escolha de aceitar a graça de Deus são, elas mesmas, graça: ambas
criadas, nutridas e inspiradas pela graça. Uma das maiores santas da Igreja, em
seu último suspiro, disse: “Tudo é graça”. É a graça de Deus que nos dá
Cristo. É Cristo quem nos dá o Espírito. É o Espírito que infunde a vida
sobrenatural em nossas almas. É esta vida que produz nossa fé. Finalmente, esta
fé cria suas próprias boas obras assim como uma boa árvore dá bons frutos.
É tudo uma só corrente divina, com seis elos dourados, que se ligam por meio do
amor. “Deus é amor, e aquele que vive no amor, vive em Deus e Este
nele” — esta realidade concreta é o “Cristianismo Puro e Simples”. Contudo…
neste ponto, a conversa foi, bruscamente, interrompida. Os três homens
começavam a esboçar um sorriso quando duas coisas aconteceram simultaneamente.
Primeiro, o rádio anunciou um evento apocalíptico na América: o Boston Red Sox vencera a World Series. Segundo, entre a voz do
anúncio, o céu abriu-se como um pergaminho e todos os três homens foram
arrebatados para o Céu. Enquanto subiam, ouviram uma voz parecida com aquela de
Charlton Heston balbuciando algo sobre “o mais claro sinal apocalíptico
que eu jamais lhes dei”. Talvez devêssemos começar nosso trabalho e completar a
discussão que eles começaram antes que seja tarde demais.
OBS. : Este texto será incluso no apêndice da nova edição do livro "Por que estes protestantes tornaram-se católicos! Testemunhos de ex-pastores e leigos que voltaram à Igreja-Mãe", de autoria do Jaime Francisco de Moura.
Tradução:
Raul Martins
Revisão: Fábio Salgado de Carvalho
Revisão: Fábio Salgado de Carvalho